Reflexão | Júlio Carneiro* | [email protected]
Para fazer pensar
O sargento
e a jornalista
RECENTES
acontecimentos
no
cenário
midiático me encabularam. Existem muitos,
mas dois que chamaram a minha atenção
foram o do sargento da aeronáutica preso na
Espanha durante a escala de um dos aviões
da comitiva oficial que acompanhavam o
presidente da República, Jair Bolsonaro, ao G20.
O outro episódio diz respeito ao impedimento
à participação de uma jornalista e seu esposo
em uma feira literária em Santa Catarina.
Ambos foram seguidos de comentários muito
pejorativos, seja por parte de autoridades, seja
por muitos cidadãos que, independentemente
do mérito sobre os fatos, revelaram sustentar
uma epidemia de intolerância e uma anômala
visão sobre quem são as pessoas. Não entro
no mérito do crime de envolvimento no
narcotráfico ou da questão da tortura na época
do regime militar. Também não me detive a
pesquisar e tentar entender os fatos, a história
ou as complexidades que levaram esses dois
seres humanos a ficarem nessa situação.
Não! É bem mais anterior essa minha
apreensão, no sentido de que, antes de entrar
na discussão desses méritos ou de qualquer
outro, precisamos trocar as lentes através das
quais olhamos as pessoas em geral. As atuais
lentes não estão permitindo enxergar bem a
fisionomia humana das pessoas. Simplesmente
as vemos como vultos; ou pior, apenas como
pedacinhos de uma composição maior. As
pessoas estão sendo despersonalizadas por uma
crise cultural que contamina nossas entranhas
e nos faz cegos.
É verdade que o soldado é sargento da
Força Aérea Brasileira e a jornalista é uma
integrante da Rede Globo. É verdade que um
foi pego transportando droga ilícita e a outra
faz reportagens e comentários que desagradam
ao menos uma parte do púbico. Mas eles não
possuem razão, emoção ou não estão ligados
a uma família, a amigos do passado ou do
presente, a uma história de lutas, sucessos e
fracassos? Acho que o que transpareceu na
leitura dos fatos e das controvérsias noticiadas
é que eles foram despersonalizados, viraram
objetos, peças de uma guerra. Foram jogados
de um lado ou do outro, sem se tentar entender
nada mais. Enfim, um linchamento assistido e
aplaudido, ora por uns, ora por outros.
Dois indivíduos sem fisionomia, sem família
e sem história, com rótulos que, transpassando
os contornos humanos, os transformam em
monstros ou seres horrivelmente amputados de
atributos - aqueles que deveriam ser eternamente
salvaguardados porque dizem respeito também
a mim, a nós e a quem somos.
Este é o ponto da minha indignação. O
fenômeno da despersonalização não é limitado
a eles, mas atinge a todos nós. Não pretendo
acompanhar os fatos, opiniões e declarações
protocolares sobre essas duas pessoas ou mesmo
o que elas teriam a dizer, pois não muda o
fato de que a sociedade como um todo está se
desumanizando e precisando mudar as lentes. O
todo inclui a mim e as nossas comunidades.
* O autor é empreendedor social
do Projeto Oficinas pelas Cidades
Fraternas
Outubro 2019 | Cidade Nova |
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